quinta-feira, junho 23, 2005

 

A Taça (ou o Viandante)

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Curioso (vestido com um clássico fato azul escuro) – Quem és tu, belo e jovem viajante, que com essa visual ternura nos conduz?

Viandante (com uma bata branca comprida, uma farta cabeleira e um saco de viagem às costas, sobre o ombro esquerdo) – Sou só um mero viandante com quem ninguém espera cruzar o seu trilho, o seu caminho existencial.

Curioso – A única luz que vislumbrei eras tu.

Viandante – Mais um declarado erro por existir. Claro que era eu. Não está aqui mais ninguém. Perdoa-me, mas perante outros seres curiosos como tu, quero algo mais do que o presente me dá. Acho que a tal tenho direito

Curioso – Sim. Mas essa paixão que apregoas reflecte-se na inibição de certos comportamentos e, essencialmente, na incerteza ou desconexão do discurso. E quanto a ti, não me parece que vás muito longe.

Viandante – Mas se ainda nem disse coisa alguma... (começa a cantar) “Há muitos que cantam a dor e o pranto de o Amor os não querer... mas eu, que também o não tenho, o que canto é outra coisa qualquer”... percebeste? Ou nem por isso?...

Curioso – Mais ou menos. É muito bonito. É da tua autoria?

Viandante – Achas?! Claro que não. É do Pessoa.

Curioso – Do Pessoa?.. E achas que deves declamar coisas dos outros?!

Viandante – Dos outros?! O Pessoa não é o outro, mas sim todos nós. Ele escreveu, viveu e sofreu por todos nós. Ou não sabes isso?

Curioso – Mas acreditas nisso?! Que haja alguém que morra pelos outros? Isso é altruísmo de categoria...

Viandante – Não sabes que nada podes fazer contra um coração despedaçado? De nada serve fazê-lo sofrer, porque já está imberbe. Já está sem prazo de validade e essa é a inevitável verdade, é a única razão do teu pranto. Quer queiras quer não. (começa novamente a cantar) – “And i hate to remind you but you going to die...” (repete).

Curioso – E essa cantoria vem a propósito do quê?..

Viandante – Vem a propósito daquela seta que de uma forma inflame te atingiu e hás-de dizer a ti próprio: desculpa lá, mas chegou a tua vez de sofrer!

Curioso – Se os sentimentos assim te respondem, tudo bem. Mas eu não funciono dessa forma. Ai isso é que não. Pega lá na tua trouxa e vai em busca do exílio, o teu palácio da sabedoria. Sim, fugir é sempre mais fácil...

Viandante – Não estou a fugir. Vou preparar melhor o meu regresso. É muito diferente.

Curioso – Pois, eu vou ficar. Para ver no que isto dá. Somente esperando se o destino acerta nos pontos dos is. E se não bater tudo certo, olha, que se foda a taça!

Viandante – Boa malha! E eu do outro lado, lá estarei para foder o cabrão do destino, isto é, se ele tiver nome, senão passa a ter. É isso mesmo, vamos dar-lhe um nome: Destino de apelido familiar e Cabrão de nome próprio. Impecável, Cabrão do Destino, até não soa mal.

Curioso – Mas como vais encontrá-lo?!

Viandante – Sei lá. Acho que com o poder conferido pela reflexão e pela busca intelectual poderemos superar certas amargas e intempestivas tropelias da vida. E daí concluo: vão-se todos foder! O milagroso poder do Amor, da paixão, hão-de a ver prostrada nas vossas barbas e nos vossos buços, não me vão acusar de machismo,.. bem perto de vós e não a conseguirão contemplar. A vida é múltipla, mas a existência é só uma. O céptico do Amor sempre vos perseguirá até encontrarem, ou não – há quem nunca consiga encontrar – o tão desejado ninho da felicidade.

Curioso – E tu, agora não fales pelos outros, se não encontrares esse ninho, o que farás?..

Viandante – Sei lá. Nada. Apenas direi como tu: Que se foda a taça! Não é?! Se ainda ninguém lá chegou, porque raio haveria de ser eu o feliz contemplado?!... Qualquer coisa que se aproxime ao intangível, algo como nunca foi mostrado até hoje. Algo grandioso, tão grande que estas gentes nunca viram. Algo tão poderoso que os fará acordar dos rápidos e pérfidos sonhos que supõem ter. Uma inconfundível beleza de imagens, cores, sons, percepções, sentimentos, emoções, viagens, amor... nunca antes sentido e observado.
Um fim? Um novo princípio?.. Todos o merecem. Como que um dia calmo numa clarividente praia, uma manhã campestre, uma virgem cascata esperando por ser mergulhada pela primeira vez... a ler uma refastelada obra, a conseguir belas fotos – na película e na mente – ou uma bela e plena chuvada que nos faça acordar, de modo a que não desperdicemos esta única e trôpega vida!

(faz uma pausa, ajeita a farta cabeleira):

O (des)controlo do sobrenatural, os desencontros encontrados, umas piadas no trilho da existência, uma força da vida que nos foi roubada em algum momento de falta de lucidez. O Amor, essa fobia que todos perseguem e que por todos é perseguida, quem já, definitivamente, o alcançou que dê o primeiro passo. Algo de bastante improvável, pois então.
Sei apenas que as badaladas do meu coração estão cada vez mais descompassadas, um ciclo que tende a não se concretizar. Simples factos da vida ou puras intempéries do destino, aí reside a puta da dúvida, um mero momento que procura transformar a tua, a minha, a nossa vida para sempre. Estou farto de ser um viandante, quero antes ser um curioso que pouco sabe, do que um caminhante que tudo procura saber e que fica ainda mais confuso e mais céptico, nesta demanda por poucos tentada e por muitos menos atingida.
A pirâmide da vida sempre esteve invertida ao meu olhar. Será uma questão a ter em conta? Ou uma reformulação de teorias de, supostamente, inamovíveis torres sociais já existentes há milénios? O tal desassossego? Sabes, não é?!.. Na minha reles óptica é só pegar no volante e ser o imortal timoneiro, pois mais ninguém o ousará ser. Patente loucura ou simples existência?!.. De qualquer forma é demasiado tarde, tentarei algo melhor noutra viagem. Porquê eu? Hã?! Eh pá, que se foda a taça!

Curioso – Tens razão. Que se foda a taça.

Viandante (cantaroleia outra vez...) – “And i hate to remind you but you’re already dead...”

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